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Abr 07
"A ignorância sobre os outros não precisa de ser combatida com pás e picaretas"

    Um episódio marcante na minha experiência enquanto muçulmana e na relação com outros muçulmanos aconteceu enquanto estudante de Árabe na American University of Cairo. Num período em que a fractura sectária entre o povo sunita egípcio e os fatimidas xiitas ismailis ainda não se exprimira no recém-inaugurado Parque Al-Azhar, um gesto conjunto da construção de um projecto de desenvolvimento social e económico, de beleza e nobreza paisagística, fazendo da maior lixeira intratável da cidade uma área urbana bela e cobiçada, foi-me aconselhado não revelar a minha identidade religiosa.

    Contudo, dois meses longe da família e da comunidade trazem-nos às vezes renovados sentimentos de comunitarismo. Assim, numa tarde em que despertei de uma sesta sob o calor do Verão intenso e que fui lavar a cara, uma muçulmana perguntou-me se me preparava para a oração da tarde. Não sendo minha tradição a prática da oração da tarde em congregação, não achei mal. Aliás, achei até que seria um bom motivo para estreitarmos os nossos laços de fé. O resultado deste possível "encontro" foi desastroso para mim e frustrante e confuso para a jovem muçulmana. Tudo correu mal do ponto de vista das formalidades práticas. Fiz as abluções no "sentido inverso" de como "se devia"; os membros foram lavados na ordem trocada; o lenço que usei não era o mais apropriado; os braços descobertos... requeriam um; e, no fim de tudo, quando me prostrei e pedi auxílio ao todo-poderoso para me acompanhar generosa e benevolentemente naquele que era o dia mais difícil para mim como crente, o meu vestido da Dorothy Perkins, que era o mais comprido que havia para trazer para estas bandas do pudor, abriu-se no meio das pernas deixando ver as minhas pecaminosas coxas! Depois de todo este desaire, a moça perguntou a uma colega de curso, que era tão ismailita quanto eu, há quanto tempo me tinha convertido ao Islão.

    Lamentei que naquele dia nada lhe tivesse contado sobre as maravilhas que encontro nos meus cânticos devocionais muçulmanos de origem indiana, ou das danças e músicas afro-indianas que celebramos em épocas festivas. Lamento ainda que o nosso conhecimento se tenha resumido a preconceitos. Que a ignorância tenha fechado o caminho a uma descoberta fantástica sobre o outro, que afinal é igualmente muçulmano.

    Sempre que me refiro à ignorância que temos uns sobre os outros e às consequências negativas que o desconhecimento pode trazer na relação conflitual entre povos e nações, refiro-me não apenas ao que não se conhece sobre os muçulmanos, da sua história ao seu desenvolvimento civilizacional, mas sugiro aos próprios muçulmanos que fujam à tendência para a homogeneização e hegemonia da fé islâmica, excluindo toda a dimensão cultural que a fé comporta. Todo e qualquer muçulmano deve ser igual ao outro apesar da magnitude de experiências de vida e de
expressões de fé que embelezam, mais do que enfraquecem, a dimensão da vida religiosa enquanto vivida por humanos, tão diferentes como criativos na adoração ao divino.

    É esta ignorância que está na base de muitos dos actuais conflitos civilizacionais e que devemos corrigir nos nossos quotidianos - os muçulmanos sobre os outros muçulmanos, e o resto da sociedade sobre todos os que nelas estejam representados.

    Dito isto, há trabalho a fazer. A educação e de base nas escolas, mesmo laicas no nosso contexto, não deveriam excluir a possibilidade de oferecer um curriculum escolar onde a história das grandes civilizações se fizesse conhecer. Pasmo quando percebo a quantidade de interesses sobre o mundo do conhecimento que fica fora do universo escolar, dos desenvolvimentos teológicos às culturas, da filosofia às ciências, das artes, da arquitectura, da engenharia à linguística ou à história das ideias. Depois, quando os problemas do desconhecimento se levantam, e os conflitos emergem, esperamos que venha o chefe espiritual daquela gente dizer algo que os desculpe, quando, a julgar pela minha própria experiência, não sei que "chefe" pode justificar o quê num Islão tão plural e diverso como é aquele que existe hoje e desde sempre.

    A ignorância sobre os outros não precisa de ser combatida com pás e picaretas, nem fazendo escavações arqueológicas. Estas são úteis, e por isso louvo o excelente trabalho que Cláudio Torres e a sua equipa vão fazendo em Mértola e hoje exibem no museu on line anunciado pelo próprio PÚBLICO ( www.discoverislamicart.org ). Lá pelo menos podemos conceber a tal Europa de que falava Frei Bento, que não precisa de ser necessariamente um clube cristão, mas que enaltece as suas raízes não apenas judaico-cristãs, mas também as islâmicas, para além de outras. Nesta linha ideológica, também Parma, a capital italiana da Música, acolheu colecções e mostras de manuscritos e música raras do Museu Aga Khan ( www.akdn.org ) onde a fé e a cultura estão intimamente ligadas, e onde os crentes continuam integrados e não excluídos ou alienados da sua identidade.

    Para se combater a ignorância há que procurar conhecer. Há que fazer uma caminhada humilde no reconhecimento da importância do outro na formação de cada um de nós. Há que, sobretudo, escolher a literatura e as fontes, pois, como alertava Pacheco Pereira sobre a boa e a má literatura, os bons e os maus blogues, comparando--os aos quiosques e às leituras que elas disponibilizam, cabe-nos a nós escolher o que queremos ler, ver, ouvir e pesquisar.

    O mesmo se aplica às universidades ou aos orientadores que escolhemos. Há os que estão aí para passar os diplomas que passam a irreal e distorcida hegemonia e monolitismo do Islão, seja em instituições públicas ou privadas, e há os que estão aí para realmente ajudar a conhecer mais e melhor e de forma fiável porque também criticam e são rigorosos.

    O teologismo do Islão não responde a todos os desafios que as comunidades de crentes nos colocam, e muito menos oferecem respostas a situações político-económicas de estratégia internacional - para estas temos de procurar as explicações mais razoáveis e de sensatez política. No entanto, a criatividade interpretativa a que o próprio Alcorão inspira, e a leitura diversificada das suas comunidades interpretativas deixam-nos mergulhar nas profundezas de um saber que perpassa o tempo, recorda a história e aviva as memórias da convivência humana e da construção de uma ética e estética de inspiração civilizacional. Pelo que, do que precisamos mesmo, nos dias que correm, é de criar diálogos críticos sobre o conhecimento.


Estudiosa de temas islâmicos
Faranaz Keshavjee
Público, 30.04.2007

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